A exatos 19 anos atras, em 1998 para sermos mais exatos o então jovem desenhista de 24 anos Daniel HDR estava começando sua carreira internacional, porém já bastante experiente no mercado nacional com trabalhos publicados em várias editoras, inclusive a participação no projeto Megaman da editora Magnum, editada por Sérgio Peixoto.
Neste mesmo ano Daniel escreveu uma matéria para o Fanzine “E?”, falando a respeito de uma questão que apesar de datada, ainda é motivo de conversas, debates e discussões acaloradas, o quanto uma obra pode ou não ser considerada esteticamente “pura” em sua essência apenas se levando em consideração a origem de seu desenvolvimento e produção. Em espacial, a “pureza” do estilo japonês de produzir uma HQ, mundialmente conhecido como Mangá.
De forma clara e objetiva, Daniel expõe seu pensamento, com o único interesse em despertar um senso crítico, que fará a diferença entre a nossa percepção de um universo muito mais amplo, em oposição a visão tacanha e rotulada de alguns formadores de opinião insistem em perpetuar ao longo do tempo. Mantendo-se contemporânea e pertinente mesmo após tantos anos.
A RIDÍCULA BUSCA DO MANGÁ PURO
Você gosta de mangá? Ótimo! Eu também! Agora, você já parou para pensar nesta não tão importante, mas curiosa questão… O QUE é MANGÁ? Você pode chegar à conclusão que Mangá é aquele tipo de desenho que tem olhos grandes e muitos grafemas de velocidade (aqueles riscos no fundo. ou no próprio personagem, passando a ideia de movimento), entre outras características. Disso se entenderia que uma HQ reunindo todos estes elementos, principalmente o tipo de construção de rostos e corpos, é um mangá.
Pois bem: de vez em quando, encontramos outros trabalhos que utilizam, além destes recursos, outros que seriam, digamos, “oriundos” de outros países. Quando isso acontece, há quem diga que o quadrinho em questão não é um mangá… é um HÍBRIDO. Que não é puro. Sinceramente, isso parece papo de nazista, com sua infeliz “pureza racial”. Posso ter projetado o assunto em vários prismas, mas creio que você, leitor, está entendendo onde quero chegar.
HÍBRIDO É O QUE, AFINAL?
O que é um híbrido? No Aurélio está escrito que híbrido vem do grego hybris, “ultraje”, pelo latim hybrida – a miscigenação, segundo os gregos, violava as leis naturais. Adjetivo: originário do cruzamento de espécies diferentes. 2) Figurado: Em que há mistura de espécies diferentes. 3) Gramatica: diz-se de vocabulário composto de elementos de línguas diversas, como por exemplo “monóculo”, em que o primeiro elemento vem do grego e o segundo do latim. 4) Animal ou vegetal híbrido: a mula é híbrido do asno e da égua ou do cavalo e da jumenta.
Dizem que ”o mangá feito no ]apão é puro”. Sempre que ouço isso, lembro-me do saudoso Tezuka Osamu, pai do mangá moderno japonês. Ele sempre dizia que seu interesse por desenho (e consequentemente, seu estilo) tinham como inspiração, entre outros fatores, os desenhos de Walt Disney. Besteira? Basta ver os olhos grandes, a construção arredondada dos seus desenhos… A cultura que nos cerca influencia tudo o que fazemos. Influenciou Disney, influenciou Tezuka e este a todos que surgiram depois.
Pode parecer papo intelectualóide, mas vejam: não se pode falar em (usando o termo anterior) “pureza” se tudo tem influência de algo, tendo diversas características de outras culturas ou ideias. Chacrinha já dizia: “Nada se cria, tudo se copia!”. Ele queria dizer que se você cria alguma coisa, não é uma cópia, mas sinal de que aquilo lhe influenciou e está lá, visível ou não para alguns. Claro, é preciso saber diferenciar muito bem uma influência de um plágio descarado, mas também tem que ficar claro: influência não é plágio. E como dizer que Harold Foster, Wil Eisner ou Frank Miller plagiaram o cinema. Ou que Elvis é um plágio do Blues. É ridículo!
CARIMBO NA TESTA
Sem esquecer de falar nos rótulos. Eles são perigosos em qualquer expressão cultural. Os compartimentos mais usados são: “mangá” é quadrinho feito no Japão, “banda desenhada” é o quadrinho feito na Europa e “comics”, o feito nos EUA. Quanta besteira… tudo é história em quadrinhos – só que feitas em países diferentes. Podem dizer: “Ah, mas mangá tem aqueles personagens estilizados, com olhos grandes e cabelos espetados”. Mas o que me dizem de autores como Goseki Kojima (Lobo Solitário), entre outros, que deixam as figuras menos caricatas? Onde eles se enquadram? Não são mangá? Não estilizam tanto as figuras como Tezuka fazia? ”Ah, então é a narrativa com os tais grafemas e velocidade, uma forte linguagem visual”… Sei… Narrativa… Mas isso também não tem no quadrinho europeu? Linhas, diversos traços, que podem indicar tanto movimentos ou iluminação no desenho, como no trabalho do Hergé ou do Hugo Pratt?… E a atual tendência do quadrinho norte-americano, com autores como Adam Warren, Joe Madureira, Humberto Ramos, que são influenciados diretamente pelo mangá (”Mas o Adam Warren faz mulheres com lábios…!” – o Masamune Shirow também faz! Qual o problema?). E no Japão, também há influência do quadrinho americano. Tô falando besteira? É só ver as mulheres desenhadas pelo Masami Obari (Fatal Fury, Gowkaiser) e o Shirow.
Ou seja: É preciso parar de querer separar tudo. E aonde quero chegar com este texto? Em dois pontos: 1º) Mangás não são a única coisa na face da Terra. Procure ler outras coisas. Crie um senso crítico. Não aceite as coisas por comodismo. Leia outra coisa! Pegue o que agrada de tudo o que você ver, faça o que você gosta… só não fique alienado; 2ª) Assim como quero que você abra seus horizontes para outros tipos de quadrinhos, saiba que mangá e anime são um lazer. Não é preciso levá-los a sério. Para alguns, quadrinhos são opção de vida, arte; para outros, são apenas 20 minutos de entretenimento… Mas isso é conversa para outra ocasião.
Matéria publicada originariamente no Fanzine “E?” número #1, 1998.
AGRADECIMENTOS: Orlando Tosetto, Daniel HDR
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5 Comentários
Muito bom o resgate, é algo que ainda pensam nos dias de hoje, só um adendo, um erro que se manteve dos originais, o ilustrador do Lobo Solitário é o Goseki Kojima, Ryoichi Ikegami ilustrou outro trabalho do Kazuo Koike: Crying Freeman.
P.S: Tem uns textos do Orlando Tosetto que também poderiam ser resgatados
“Nazismo”. https://pt.wikipedia.org/wiki/Reductio_ad_Hitlerum?fref=gc